Uma perspectiva Ayurvédica sobre alergias – Asātmya

Os termos atualmente utilizados para definir alergias e intolerâncias são explicados na literatura ayurvédica com o conceito de Asãtmya. “Aushadna anna viharanam upayogam sukhavaham sahi satmyam” significa que sätmya (tolerância) acontece quando os doshas de um indivíduo aceitam e se ajustam aos medicamentos, às mudanças dietéticas e às mudanças de ambiente. Asätmya (intolerância) é quando um ou mais doshas não aceitam essas mudanças e reagem, geralmente, com aquilo a que se pode chamar de alergia, ou de intolerância, quando num estadio mais ligeiro. Intolerância e alergia são condições de hipersensibilidade, de resposta excessiva do organismo perante determinado fator de agressão, numa reação de um ou mais doshas a um fator causal. Segundo o Ayurveda a raiz da causa é um desequilíbrio do agni.

Agni, também podendo ser entendido como a capacidade metabólica e transformadora do indivíduo, à semelhança dos doshas, é um dos conceitos fundamentais do Ayurveda. O funcionamento correto das várias fases da digestão e tipos de agni é primordial para a nutrição adequada dos sapta dhatus (os sete tecidos), para a eliminação dos malas (detritos) e para evitar a formação e acumulação de āma (biotoxinas) no organismo.

Agni em sânscrito traduz-se por fogo, que é responsável pela transformação.

A sua função primária é a digestão, absorção, assimilação e transformação dos alimentos e sensações em energia. Quando existe bom agni, há saúde. O Ayurveda considera que a pessoa é tão idosa quanto o estado do seu agni. Quando o agni funcionar bem, o sistema imunitário é forte e a pessoa tem uma vida longa e saudável. Quando o agni enfraquece a saúde deteriora-se e, quando este se extingue, a pessoa morre. Assim, a medicina ayurvédica dá especial atenção à qualidade e ao estado do agni, uma vez que, em conjunto com os três doshas, é responsável pela saúde e equilíbrio do organismo.

Os dois fatores que mais contribuem para determinar a resistência de alguém à infeção e alergia são o agni (fogo metabólico) e as qualidades específicas do prakruti (constituição) de uma pessoa. Agni mantém a nossa resistência e imunidade naturais produzindo ojas, tejas e präna equilibrados, que destroem ou neutralizam qualquer invasor. Certas respostas imunes específicas podem desencadear hipersensibilidade e às vezes levar a quadros de gravidade significativa (reações alérgicas).

Cada tecido tem o seu próprio dhatu agni. O agni de cada tecido é responsável pela formação correta dos mesmos, as suas funções e a síntese de uma parte mais subtil que nutre o tecido seguinte, finalizando em Ojas, que é o produto mais subtil de todos os tecidos. Para que haja saúde digestiva é necessário que todos os agnis funcionem corretamente.

Especificamente, os dhatu agni tem as seguintes designações:

  • Rasa agni – digestão do tecido linfático;
  • Rakta agni – digestão do tecido sanguíneo;
  • Mamsa agni – digestão do tecido muscular;
  • Medo agni – digestão do tecido adiposo;
  • Asthi agni – digestão do tecido ósseo;
  • Majja agni – digestão do tecido nervoso;
  • Shukra agni – digestão do tecido reprodutor.

Cada dhātu agni (capacidade metabólica do tecido) no corpo humano regula as funções fisiológicas de seu tecido particular. Os componentes elementares das células – éter, ar, fogo, água, terra governam os aspetos estruturais das células, enquanto os doshas (vāta, pitta, kapha) organizam e governam as atividades funcionais das células e a comunicação intercelular.

Quando bactérias ou substâncias tóxicas invadem os tecidos, o präna promove a secreção de ojas e tejas nas células. Essas três energias subtis movem-se para a região afetada e destroem as bactérias ou neutralizam as toxinas com a ajuda do respetivo dhātu agni. Ojas é a essência de todos os tecidos e desempenha um papel primordial na manutenção da imunidade. É derivado de moléculas kapha, mas funciona junto com tejas e prāna. Se o dhātu agni for inadequado, a substância invasora pode danificar as células e produzir material tóxico, chamado ama. Esse ama afeta os doshas de acordo com as características da substância invasora e da constituição do indivíduo.

Āma – Biotoxinas

Āma em sânscrito tem origem na raiz “am” que significa danificar ou enfraquecer. Normalmente é traduzido por biotoxinas que se podem acumular no tubo digestivo e a nível celular, levando ao desenvolvimento de doenças. Quando o agni está desequilibrado verifica-se a formação de āma que resulta da digestão inapropriada ou incompleta dos alimentos. Os alimentos não digeridos originam substâncias pegajosas e tóxicas, apresentando atributos opostos aos do agni.

Cada um dos três doshas interage com o ama para produzir uma reação local ou geral no väta, pitta ou kapha. As substâncias que produzem essas reações são as chamadas de alergéneos. A forma que uma alergia assume depende do tipo específico de dosha do alergéneo (vata, pitta ou kapha).
Circulando por todo o corpo na corrente sanguínea estão moléculas vata, pitta e kapha, proporcionais à proporção dos doshas no prakruti e na geração de uma pessoa que podem ser absorvidas na corrente sanguínea e entrar em contacto com as moléculas doshic. Se o rasa (plasma) agni ou o rakta (sangue) agni for baixo, os doshas reagirão ao alérgeneo, à força e às qualidades do alérgeno. Isso é chamado de dosha rupa (sinais e sintomas primários do dosha), que é uma reação alérgica.

Os fatores que determinam se há ou não uma reação alérgica são:

  • Prakruti (constituição da pessoa);
  • Vikruti (estado atual de um dosha);
  • Dhātu agni (Fogo digestivo do tecido);
  • Quantidade de alérgeno que entra no corpo.

Imaginemos duas pessoas que tenham um rasa dhātu agni (fogo digestivo do tecido plasma) fraco e sejam expostas a uma quantidade de pólen do tipo kapha. Se a pessoa A tiver um kapha equilibrado, ela terá uma reação leve ao alérgeno. Se a pessoa B tem kapha alto, ela tem uma reação muito mais grave, possivelmente até entrando em choque anafilático se exposto a uma grande quantidade da substância.
Um ponto importante é que o dosha rūpa de um prakruti criará uma reação leve, enquanto o dosha rūpa do vikruti cria uma reação alérgica grave.

É a produção de toxinas (āma) devido ao mau agni que causa uma alergia.

Existem quatro tipos de ama que podem ser produzidos:

  1. Rasa āma – de āhāra rasa não processado (comida não digerida)
  2. Mala āma – por eliminação inadequada
  3. Ama dosha – Toxinas nos doshas desequilibrados na 3ª fase da patogénese
  4. Mano āma – toxinas mentais, emoções não processados, não resolvidas e suprimidas. Devido ao baixo sādhaka agni reduz a clareza mental.

Tudo ocorre apenas se houver um agni baixo nesse processo específico. Portanto, se houver um dosha dushya (distúrbio qualitativo de um dosha) mas se tiver um agni forte, não haverá āma, apenas nirāma (sem āma) um distúrbio do dosha. Um indivíduo com dhātu agni forte e robusto geralmente não terá uma reação alérgica, mesmo que exista vikruti no dosha (desequilíbrio do dosha). A única exceção é se a pessoa for exposta a uma enorme quantidade de alérgeno específico e sobrecarregar o dhātu agni.

A alergia atópica define-se como a tendência para hipersensibilidade a um determinado alergéno, predisposto geneticamente, ou segundo o Ayurveda a um trauma na idade infantil e questões emocionais não resolvidas e que se acumulam nos órgãos. A repressão das emoções como ansiedade, medo ou raiva geram stress que por sua vez estimula a libertação de toxinas no organismo, sendo que a repressão de medo, ansiedade e insegurança agrava vata, repressão de raiva, ódio e inveja agrava pitta e repressão de ganância, possessividade, apego agravam kapha.

O Ayurveda enfatiza os sinais e sintomas das alergias, com ênfase no pulso, língua, unhas, cabelo, malas, e muitos outros, não esquecendo o peso da história familiar, que atualmente descrevemos como carga genética familiar. A caracterização do prakruti e vikruti são determinantes no diagnóstico do subtipo de alergia (vata, pitta, kapha), assim como respetivo plano de abordagem. Uma alergia do tipo vata está associada a um agni irregular (vishama agni), podendo causar gases, distensão abdominal, dispneia, podendo levar a cefaleias, artralgias, ciatalgia, hemorróidas; uma alergia do tipo pitta deve-se a um agni intenso (tikshna agni), podendo causar epigastralgia, diarreia, náusea e vómitos, rush cutânea, vermelhidão na pele, urticária, eczema, psoríase; uma alergia do tipo kapha deve-se a um agni baixo (manda agni), podendo causar febre, constipação, tosse, escorrência nasal, congestão brônquica, asma.

A abordagem terapêutica inicia-se pela remoção do fator causal (nidana parivarjanam), o que pode incluir desde produtos de limpeza, cosmética, agrotóxicos, tecidos, animais, alimentos. Várias ervas apresentam propriedades anti-inflamatórias, com atividade anti-histamínica e glucocorticóide, como o ashwagandha, shatavari e alcaçuz, bons respetivamente para vata, pitta e kapha, assim com o aloé vera e ghee. Para a inflamação da mucosa nasal, acompanhada eventualmente de espirros, secreção e obstrução nasal, o jala neti (lavagem nasal) também pode ser recomendado, sendo benéfico na redução da sensação de incómodo gerada pela alergia. A abordagem ayurvédica de tratamento inclui o processo de shamana (detoxificação apaziguadora dos doshas) e shodana (detoxificação removedora dos doshas, geralmente feito quando não está na fase aguda da reação alérgica) aplicados de forma totalmente individualizada ao paciente e seu contexto histórico e atual, por forma a controlar a doença, que pode manifestar-se de múltiplas formas, predominantemente com lesões dermatológicas, patologias respiratórias e/ou gastrointestinais.

De acordo com o princípio ayurvédico de que se o indivíduo mantiver um bom agni a doença não se desenvolve, o mesmo acontece com os processos mediados por alergias. A partir de um agni disfuncional forma-se ama, impedindo que os doshas tolerem determinado elemento (seja fármaco, alimento, ambiental ou emocional); de acordo com a quantidade formada, constituição biofísica do indivíduo e o tempo de exposição, vai desencadear a resposta do organismo ao excesso de biotoxinas, que se manifestará de múltiplas formas de acordo com a constituição e o tipo de alérgeno. A intensidade da resposta inflamatória será tão maior quanto mais disfuncional o agni ou quanto maior a intensidade da exposição. Uma abordagem personalizada é sempre o caminho mais curto para o sucesso terapêutico.

 

Disclaimer: É altamente recomendável que consulte um terapeuta ayurvédico qualificado antes de iniciar qualquer processo de desintoxicação para eliminar o ama ou tomar ervas ayurvédicas para as desordens alérgicas. O protocolo de tratamento pode mudar com base na doença e na constituição de cada pessoa.

 

Autores:

Claudina Saldanha
João Pedro

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